AS ORIGENS DA DEVOÇÃO MARIANA
MONS. ÂNGELO COMASTRI
VIGÁRIO-GERAL DO SANTO PADRE
PARA O ESTADO DA CIDADE DO VATICANO
Na perspectiva do mês de Maio, temos o gosto de oferecer aos nossos leitores o texto publicado pelo arcebispo Ângelo Comastri em «L’Osservatore Romano» (ed. port., 2-XII-06).
Quando começou a devoção mariana? A pergunta é legítima. E a resposta é imediata e segura: a devoção a Maria começou com o próprio cristianismo. Observemos os factos.
Entremos na pequena Casa de Nazaré, a casa das nossas origens e das nossas primeiras memórias. Eis o que encontramos: o Anjo Gabriel mandado por Deus, aparece a Maria e diz-lhe: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo!» (Lc 1, 28).
Com estas palavras que vêm do Céu começa a devoção mariana. Quem pode negar a evidência deste facto? E quando Maria, única guardiã do anúncio do Anjo, se apresenta a Isabel depois da longa viagem da Galileia até à Judeia, acontece outro facto singular. Isabel ouve a saudação de Maria e percebe que o menino «salta» de alegria no seio, enquanto um frémito do Espírito Santo a atravessa e lhe sugere palavras de rara beleza e de surpreendente compromisso.
Ei-las: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha ter comigo a mãe do meu Senhor? Pois, logo que chegou aos meus ouvidos a tua saudação, o menino saltou de alegria no meu seio. Feliz de ti que acreditaste, porque se vai cumprir tudo o que foi dito da parte do Senhor» (Lc 1, 42-45). É a segunda expressão de devoção mariana registada no Evangelho.
Não se diga então – como às vezes acontece – que a devoção mariana nasceu depois de muitos séculos, por uma espécie de entusiasmo mariano da Igreja Católica. Não, isto não é verdade! A devoção a Maria está registada no Evangelho e nasceu com o Evangelho. Depois, se seguirmos os passos de Maria maravilhados, podemos recolher pessoalmente outras flores fresquíssimas de devoção à Mãe de Deus.
Vamos até à narração do Natal. O Evangelho de Lucas refere: “Quando os anjos se afastaram deles em direcção ao Céu, os pastores disseram uns aos outros: «Vamos a Belém ver o que aconteceu e o que o Senhor nos deu a conhecer». Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura» (Lc 2, 15-16).
Pensais que os pastores, após se terem ajoelhado diante do Menino, não tenham lançado a seguir um olhar à Mãe e não tenham sussurrado alguma palavra? Não é legítimo pensar que os pastores tenham exclamado: «Feliz és tu, Mãe deste Menino!»? Era uma expressão de devoção mariana.
Passemos ao evangelista Mateus, que narra a chegada dos Magos em Belém e usa estas palavras textuais: «E a estrela que tinham visto no Oriente ia diante deles, até que, chegando ao lugar onde estava o menino, parou. Ao ver a estrela, sentiram imensa alegria; e, entrando na casa, viram o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se, adoraram-no» (Mt 2, 9-11).
Podemos, sem muito esforço, imaginar a grande emoção dos Magos, os quais, após uma longa e aventurosa viagem, tiveram a alegria de ver o Menino... tão esperado e desejado! Porém, não nos afastamos da verdade dos factos, se imaginarmos também que os Magos, depois da adoração do Menino, tenham olhado para Maria e lhe tenham dirigido palavras de admiração: também esta é devoção mariana... percebida nas entrelinhas do Evangelho!
Prossigamos o nosso caminho... e cheguemos às bodas de Caná. Conhecemos toda a encantadora história da festa das bodas, na qual Maria intervém ao mesmo tempo com delicadeza e decisão para salvar a alegria dos noivos. Os servos, que conheciam o exacto suceder-se dos factos, certamente aproximaram-se de Maria e disseram: «Jesus escutou-te! Fala-lhe de nós e pede uma bênção para as nossas famílias!». Também estas eram autênticas flores de devoção mariana.
E os noivos não retomariam com Maria o discurso das bodas e da água transformada em vinho? Certamente teriam dito a Maria: «Obrigado! A tua intervenção salvou a nossa festa. Continua a orar por nós!».
Assim começa a devoção mariana. E continua nos séculos sem interrupção. Limito-me a dois testemunhos.
A Basílica da Anunciação em Nazaré teve origem com o abatimento de uma construção levantada pelos franciscanos em 1700. O Pe. Bellarmino Bagatti (1905-1990), um dos maiores arqueólogos bíblicos do século XX, «aproveitou» a demolição para reconstruir a história arquitectónica do lugar de culto. Antes de mais, pôde estabelecer que não era verdadeiro (como muitos defendiam) que naquele lugar houvesse túmulos romanos e que, portanto, pudessem surgir – por motivo de pureza – habitações hebraicas. Com efeito, descobriu-se que não havia sepulcros mas, ao contrário, traços muito evidentes de casas de gente do lugar. De qualquer modo, ficou confirmado que o edifício do século XVIII – como já se sabia – foi erigido sobre uma igreja bizantina. Mas, nisto, houve uma maravilhosa surpresa: sob a igreja bizantina descobriram-se os restos de um lugar de culto da primitiva comunidade judaico-cristã. Eis o facto extraordinário: sobre a grande base rebocada de uma coluna, utilizada para sustentar o tecto da igreja-sinagoga, encontrou-se a inscrição, em caracteres gregos XE MAPIA, abreviatura de K(àir)e Maria, que significa: «Alegra-te, Maria!».
É a mais antiga invocação a Nossa Senhora, encontrada na mesma casa onde Ela viveu. Numa coluna, um peregrino tinha deixado outro sinal da sua passagem, um grafito devocional em língua grega, que rezava assim: «Neste santo lugar de Maria escrevi». Noutro pilar, uma palavra em arménio antigo: «Virgem bela».
Como vedes, a devoção mariana desabrocha no Evangelho e do Evangelho: na própria Nazaré!
Mas há mais. Em 1917, no Egipto, a John Rylands Library de Manchester (Inglaterra) – talvez a biblioteca mais rica de códigos do Novo Testamento – comprou um lote de papiros provenientes, com bastante probabilidade, do Baixo Egipto. Um deles, com dez linhas de texto em grego, mutilado na margem direita e com uma rasgadura no alto à esquerda (com dimensões de cerca de 14 centímetros por 9,5) foi publicado somente vinte anos depois, em 1938. Praticamente, reconhece-se com unanimidade hoje que aquele texto não pode ser datado além do terceiro século: a data mais provável é por volta do ano 250. Encontramo-nos, pois, perante a mais antiga oração mariana testemunhada por um papiro.
A fim de mostrar a importância daquelas antiquíssimas palavras, damos uma tradução delas, que foi possível realizar, integrando o texto onde estava mutilado, graças à liturgia da Igreja copta que, no mesmo Egipto de onde provém o texto, continuou a ser utilizado no seu culto, sem interrupção ou qualquer variação.
Eis O texto: «Sob a tua misericórdia nos refugiamos, ó Mãe de Deus [Theotòlae]: as nossas orações não desprezes nas desgraças, mas do perigo livra (nos): tu a única pura e a [única] bendita».
Pois bem, antes de 1938, excluía-se um culto «oficial» da Virgem Maria anterior ao primeiro Concílio ecuménico, o de Niceia, realizado no ano 325. Depois, quanto ao termo Theotókos (Mãe de Deus), os especialistas negavam que pudesse ter sido utilizado antes da célebre definição do Concílio de Éfeso, em 431. E, pelo contrário, eis que o humilde pedaço de papiro egípcio desloca em quase dois séculos para trás a data de Éfeso, que era citada como se fosse um termo peremptório.
A verdade histórica é: Maria, a partir das palavras empenhadas pronunciadas pelo Anjo Gabriel, foi imediatamente olhada com admiração. E logo a sua intercessão foi invocada por motivo do seu particular vínculo com Cristo: o vínculo da maternidade!
Portanto, quando recorrermos a Maria para a invocar com filial confiança, não nos encontraremos fora do Evangelho, mas totalmente dentro dele.